CONSTRANGIMENTO ILEGAL
INTRODUÇÃO
A
Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, que é garantida aos
brasileiros e aos estrangeiros que se encontram no território nacional a
inviolabilidade, entre outros, do direito à liberdade. Em vários incisos deste mesmo artigo, bem
como em diversos outros títulos da Lex Major, existem preceitos que demonstram
a importância da liberdade em nosso ordenamento jurídico. Como exemplo, pode-se
citar a liberdade de consciência, de crença religiosa, de convicção política,
liberdade de pensamento, dentre outros.
Entretanto,
cabe dizer que, mesmo se tratando de um direito fundamental, a liberdade não é
um direito absoluto, visto que, em determinados casos, há a possibilidade de
relativização dos direitos, como, por exemplo, quando se vislumbra conflitos
entre eles. Assim, Alexandre de Morais (2009) ressalta que os direitos
fundamentais não são absolutos nem ilimitados, e as limitações de tais direitos
se encontram em outros princípios também consagrados na Constituição. Assim, a
liberdade é requisito para que se busque, sempre, a efetivação do princípio-sol
da Constituição Federal, qual seja o da dignidade da pessoa humana. Por outro
lado, deve ser vislumbrado sob um viés relativo, devendo em determinadas
situações, ser conjugado com outros direitos e princípios.
Ainda
no sentido de proteção à liberdade, o inciso II do art. 5º da constituição
ainda assevera que, ao cidadão, não há obrigatoriedade de comportamento senão
quando a lei assim determina. Aqui vê-se o Law
empire, a supremacia da lei, ideia através qual se entende que a lei deve
ser o parâmetro que norteia a conduta individual, sendo, também, um dos
elementos norteadores de um Estado Democrático de Direito. Esse inciso
demonstra a importância da liberdade na Constituição Federal vigente, devendo
sua proteção ser irradiada para as normas infra-constitucionais. Assim, somente
com o exercício da liberdade pessoal, pode-se falar em dignidade da pessoa
humana, o que é, conforme entendimento cediço entre os constitucionalistas, o
princípio sol da Constituição Federal, daí porque a liberdade merece status de
direito fundamental.
Nesse
sentido, devido à importância que é dada à liberdade na Lei Maior, existem
tipos penais que visam à proteção desse bem jurídico. No presente trabalho,
analisar-se-á a figura típica do Constrangimento Ilegal, tem como bem
juridicamente protegido à liberdade individual.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL
Art. 146 do Código Penal - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O crime de constrangimento ilegal visa proteger a autodeterminação dos indivíduos, imputando pena para os que, de alguma forma, tolhem a autonomia de outrem. Para Greco (2011), o crime em análise é “composto pelo núcleo constranger, que tem o sentido de impedir, limitar ou mesmo dificultar a liberdade de alguém”. Nucci (2008), ainda define constranger como sendo a ação de “forçar alguém a fazer alguma coisa ou tolher seus movimentos para que deixe de fazer”
Assim, vê-se que, no crime em análise há, de uma forma ou de outra, redução ou supressão da autonomia do agente passivo. Para que se reduza ou suprima a liberdade da vítima, o agente pode utilizar, conforme texto legal, de três possibilidades, cumulada ou isoladamente:
a) Violência (vis corporalis): é a violência física, corporal;
b) Grave ameaça (vis compulsiva): é a violência psíquica, exercendo influência, nos dizeres de Greco (2011), “precipuamente sobre o espírito da vítima, impedindo-a de atuar segundo a sua vontade”;
c) Quando o agente reduz, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência da vítima: Greco (2011) chama tal possibilidade de “violência imprópria”. Assim, existirá violência imprópria, para o referido autor, quando houver redução da capacidade de resistência do sujeito passivo, que não se dê através violência ou grave ameaça. Aníbal Bruno, citado por Greco (2011), estabelece como exemplos de violência imprópria as substâncias “inebriantes ou entorpecentes, ou a sugestão hipnótica, ou o emprego das chamadas drogas da verdade ou da confissão...”.
CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA, CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
Nucci (2008) classifica o constrangimento ilegal como sendo um crime comum, visto que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo e passivo, sendo necessário que o sujeito passivo seja capaz de discernir; doloso; material, uma vez que exige resultado para que se consume; de forma livre, já que o agente pode praticá-lo de qualquer forma sem a necessidade de um modus operandi específico; comissivo, como regra; de dano, unissubjetivo e plurissubsistente.
Vale dizer que constrangimento ilegal pode ser cometido de forma omissiva, sendo necessário, neste caso, que o agente goze da posição de garante. Grecco (2011) ainda complementa a classificação demonstrando, como se verá mais adiante, o caráter subsidiário do Constrangimento ilegal.
Sendo o crime tipificado no art. 146 do Código Penal, um tipo plurissubsistente, aduz-se que ele permite o iter criminis, razão pela qual a tentativa é admissível. Assim, se o agente constrange alguém para não fazer o que a lei permite ou para fazer o que a lei não manda e, ainda assim o sujeito passivo não o faz por circunstâncias alheias à vontade do sujeito ativo, caberá tentativa.
No que se refere ao momento consumativo, em virtude de se tratar de crime material, ou seja, crime que exige um resultado, este só será consumado quando aquele que foi constrangido não fizer o que a lei permite ou fizer o que a lei não manda, após ter sofrido violência ou grave ameaça, ou após ter reduzida, por qualquer outro meio, sua capacidade de resistência.
Ainda nesse sentido, segundo Capez (2009), não pode ser considerado com crime de mera atividade, pois não basta o simples fato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça. O tipo penal sempre irá exigir a ação ou omissão desejada pelo autor seja realizada pela vítima.
Assim, diante do exposto, o elemento subjetivo do crime de constrangimento só pode ser o dolo que, para Greco (2011), pode ser direto ou eventual. Para o autor, “a conduta do agente deve ser dirigida com finalidade de constranger a vítima a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda, identificando aí, segundo a doutrina dominante, aquilo que chamamos de especial fim de agir”.
CAUSA DE AUMENTO E CONCURSO DE CRIMES
Conforme dicção do parágrafo 1º do art. 146, as penas do constrangimento ilegal serão aplicadas de forma cumulada, ou seja, aplicadas concomitantemente a pena de detenção e de multa; ainda é preconizado que será aplicada em dobro as penas nas hipóteses de se reunirem mais de três pessoas ou quando há emprego de armas.
Assim, nos dizeres de Greco (2011), as penas que inicialmente eram alternativas (privativa de liberdade ou multa) se tornam cumuladas (privativa de liberdade mais multa). Além disso, continua o referido autor, “as penas respectivas serão dobradas, aplicando-se essa causa especial de aumento somente no terceiro momento do critério trifásico”.
Já no caso do que se preconiza no parágrafo 2º do art. 146, tem-se que devem ser aplicadas as penas correspondentes à violência, além das penas cominadas ao crime de constrangimento ilegal. Nesse sentido, há divergências doutrinárias, visto que uma parte da doutrina entende que há concurso material de crimes. Greco (2011) discorda da existência de concurso material, dizendo que “embora a regra a ser aplicada, conforme determinação legal, seja a do cúmulo material, tecnicamente, estaremos diante do chamado concurso formal impróprio ou imperfeito, previsto na segunda parte do art. 70 do Código Penal.
Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.
Nucci (2008), ainda ressalta a particularidade do crime em comento, asseverando que este tem caráter subsidiário. Isto é, “se há possibilidade de enquadrar o fato em outro, mais grave, deve-se fazê-lo”. Por outro lado, continua o autor supracitado, “por ser um tipo secundário, havendo violência que implique lesão, o agente deve responder também pelo que causar”.
EXCLUDENTE DE TIPICIDADE
O fato que, inicialmente seria típico, torna-se atípico em duas hipóteses, conforme a literalidade do parágrafo 3º do art. 146:
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II - a coação exercida para impedir suicídio.
Assim, nesses casos expressos, ainda que alguém pratique o fato contido no caput do art. 146 por motivo de intervenção cirúrgica para salvar uma vida ou para se evitar um suicídio, há terá cometido crime, visto que assim estabelece de forma expressa o parágrafo terceiro do art. em comento.
Vale ressaltar, como se disse Alhures, que a liberdade é um direito pessoal do indivíduo, mas os direitos fundamentais não são absolutos. Nessas hipóteses de exclusão de tipicidade, vê-se, claramente, a necessidade de pensamento entre dois direitos: à vida e à liberdade. Assim, torna-se óbvio a maior relevância do direito à vida em relação à liberdade, razão pela qual se justifica a atipicidade da conduta quando tal conduta visa à manutenção de uma vida.
Nucci (2008), ainda ressalta que, se não viesse de forma expressa a ausência de tipicidade das condutas descritas no parágrafo 3º do art. 146, as condutas ali descritas (intervenção médico-cirúrgico e coação para impedir suicídio)estariam, respectivamente pelos institutos do estado de necessidade e pela legítima defesa de outrem.
ESTUDO DE CASO
Policial afirma ter sido vítima de preconceito e constrangimento em Vitória
Um policial afirma ter sido vítima de constrangimento e preconceito na noite desta terça-feira (19) em Vitória. O fato teria acontecido em um hipermercado localizado na Avenida Reta da Penha.
Após comprar dois vinhos, Edson Rosa, de 45 anos, que também é estudante de direito, teria sido abordado por seguranças do estabelecimento no momento em que ia ao banheiro. Segundo Edson, apesar de ter mostrado a nota fiscal atestando o pagamento, ele foi obrigado a se despir.
“Achei aquilo ali um constrangimento, o meu dia acabou”, conta Edson, que acionou a polícia em seguida para fazer uma ocorrência.
Entretanto, mesmo com a chegada dos policiais, o constrangimento não teria parado.
“O chefe da segurança foi ríspido com o pessoal que foi atender a ocorrência. Inclusive quando eu estava saindo lá, o segurança me escoltou”, completou.
Record News Espírito Santo/Rede Sim Sat/Sim Notícias
A reportagem publicada pela Agência Sim, que teve repercussão nacional, foi noticiada como caso de constrangimento ilegal e preconceito, tendo esta última infração tido maior relevância na mídia nacional, dado seu maior apelo social.
Entretanto, no presente estudo, far-se-á uma análise a fim de se observar a tipicidade da conduta do supermercado (através da equipe de segurança) no que tange, tão somente, ao crime de constrangimento ilegal.
Analisando-se o fato, observa-se que houve, por parte dos seguranças, um constrangimento, que objetivou forçar o cliente a se despir. Assim, conforme se viu, não basta o agente constranger alguém para que se configure o tipo penal em análise. É necessário que esse constrangimento seja ilegal. Assim, no fato em análise, vislumbra-se a ilegalidade na medida em que o constrangimento se deu para que a vítima a fizesse o que a lei não manda, ou seja, se despisse a fim de comprovar que nada furtou, mesmo após apresentar nota fiscal de sua compra. Nesse caso, observa-se que houve um cerceamento da liberdade pessoal do cliente, de forma que a conduta da equipe de segurança, se amolda, perfeitamente, ao tipo penal do art. 146 caput do Código Penal.
No entanto, ainda cabe um estudo referente à vítima, para que seja possível observar se no fato houve crime consumado ou crime tentado. Como visto, o crime em análise é de resultado, e o momento consumativo é aquele em que a vítima, tendo sua autodeterminação reduzida ou suprimida, não age de acordo com sua vontade, devido ao constrangimento efetuado pelo sujeito ativo. Assim, no fato em comento, houve consumação no momento em que o cliente, após o constrangimento, que, como se viu, foi ilegal, despiu-se para demonstrar que nada havia subtraído ilegalmente do estabelecimento.
Uma última análise ainda é necessária, visto que, ainda que a reportagem seja lacônica no que diz respeito à quantidade de seguranças que abordaram a vítima, cabe dizer que, se o número de agentes foi maior que três, ou seja, no mínimo quatro, incidirá, no terceiro momento da fixação de pena, uma causa especial de aumento de pena, conforme dicção do parágrafo 1º do art. 146 do Código Penal. Assim, numa futura sentença, as penas, em vez de alternativas (detenção ou multa) deverão ser somadas (detenção e multa), devendo também ser aplicadas em dobro. Não há, aqui, que se falar em crime de quadrilha, dada a eventualidade do delito, isto é, os seguranças do supermercado não se reúnem habitualmente com o fim de praticar o crime de constrangimento ilegal.
Assim, conclui-se que o fato noticiado subsume-se à norma abstrata do art. 146 do Código Penal. Isto é, todos os requisitos necessários para a configuração do crime de constrangimento ilegal estão presentes, havendo ainda, caso tenham concorrido como sujeitos ativos mais de três seguranças, uma causa especial de aumento de pena, que deverá, caso o processo siga seu rito normal, ser considerada no terceiro momento do critério trifásico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 24 ed.
São Paulo: Atlas, 2009
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal:
4 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008.
GRECO, Rogério.Curso de Direito Penal, parte
especial, Vol.II. 8ed. Niteroi:Editora Impetus,2011
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>
acesso em 24 mar. 2014